Em uma época onde audiovisuais como Game of Thrones
e Vikings despontam como um dos entretenimentos mais atrativos para o público,
O Rei chega para mostrar a força cinematográfica dos épicos medievais.
Dirigido por David Michôd, a primeira meia hora
de filme incumbe-se do implante de um ágil dinamismo narrativo que serve para
contextualizar o espectador e estabelecer as diretrizes do enredo de modo
prático e direto. Entretanto, a partir do momento em que Hal assume o trono, o
dedo do diretor se faz presente ao preterir o ritmo enérgico do longa por um
cadenciamento mais moroso que compactua com as paulatinas descobertas do rei
acerca da vida monarca. Nesse meio tempo, Michôd aproveita para expor o
cotidiano de Henrique antes da conquista da coroa de forma que futuramente
fique em realce o contraste da postura real deste com seu eu anterior; para
isso, a linguagem visual torna-se a principal ferramenta para que o cineasta
coloque em evidência características que agregam suas atividades hodiernas que
não corroboram a posição hierárquica ocupada pelo personagem.
Nesse sentido, O Rei é sobre a transformação de
um jovem leviano em um respeitoso senhor de uma nação, sobretudo uma
transformação oriunda da percepção de si e das circunstâncias vigentes. O
menino bêbado estirado sobre uma cama dá lugar à imponência de um homem solene,
bares e tabernas transmutam-se em salões e palácios, enquanto prostitutas cedem
espaço a conselheiros e oficiais de guerra. Entretanto, vale frisar que Hal se
reviscera a partir de uma iniciativa própria, tendo em vista que sua rebeldia
nada mais era que um subterfúgio mediante os ressentimentos para com o pai e
seu estilo de governo. Nesse aspecto, a película espairece tal conturbada
relação paternal apenas focando no comportamento de seus personagens, o que é eficaz
para o ligeiro engate da trama central sem se perder em passagens e explicações
frívolas, haja visto que o primeiro ato se desenvolve majoritariamente como
pretexto para o molde do caráter de Henrique, justificativa de suas ações e o
consequente desenrolar do entrecho.
Outrossim, Michôd esbanja destreza na conceição
de diálogos fluidos e verdadeiros. Isto é, considerando que grande parte do
roteiro fundamenta-se em concepções dialógicas e no traçado de estratégias, a naturalidade
do script provém - além da química que une o elenco - da volátil
transição de temas que permeiam os palratórios do texto e da interação orgânica
entre os personagens. Por conseguinte, O Rei requer a confecção de semblantes
com forte presença de tela que, na prática, são materializados na pele de William
e Falstaff. Este último, ademais da lealdade e amizade que mantém com Hal, é a
mente por trás de um dos planos mais bem elaborados do enredo que rende alguns
dos segmentos mais empolgantes de todo o filme, sem contar que o mesmo é o responsável
por trazer o ex-princípe de volta aos eixos quando este começa a se desestabilizar.
(SPOILERS A SEGUIR) Referente a William, o longa
ludibria o assistente com assaz perspicácia, sendo que a respectiva persona passa
a estória toda como bom moço auxiliando com sagacidade as várias tomadas de
decisões que preenchem a jornada de Henrique; o público, assim como o rei, se
convence ferrenhamente de sua "honestidade" e sequer questiona suas
intenções. (FIM DOS SPOLEIRS)
Também concernente à direção, cabe ressaltar o
modo com que David aborda a guerra. Objetivando explorá-la da maneira mais cru
possível, o cineasta desglamouriza a batalha expondo-a como algo sórdido, feio
e desumano, com homens sujos apinhados uns sobre os outros digladiando-se com a
primeira coisa que encontram a disposição, o que acentua-se consoante o uso de planos-sequência
que imprimem maior verossimilhança aos eventos supracitados. O combate mano a
mano igualmente não tem plumas, são simplesmente dois seres humanos inaptos na
arte da guerra lutando por suas vidas; não há movimentos mirabolantes de espadas
nem estocadas impossíveis, há somente homens em armaduras pesadas, fadigados e
ofegantes. Além do mais, é imprescindível enfatizar a câmera de Michôd que, bastante
segura e lacônica, extrai com invejável autenticidade o clima beligerante, seja
por intermédio de planos mais fechados que exaltam a ambientação caótica, seja
por meio de uma maior amplitude panorâmica que salienta a magnitude da contenda.
Tal genuinidade narrativa alicerça-se também na
condução gradual da película que visa difundir a realidade em sua forma mais
bruta. Dito isto, o filme articula os jogos políticos com muita calma,
estendendo-se com paciência ao correr do longevo processo de construção de
alianças, decretos e estopim de confrontos. Essa fidelidade projeta-se
similarmente nas diversas camadas constituintes de uma guerra, manuseando a
passagem de tempo como reflexo dos duradouros procedimentos que a abarcam integralmente,
desde a exaustiva manutenção de um cerco até os debates que abrangem a conceição
de estratagemas e a ansiedade que precede a batalha. Em função da disponibilidade
de tempo acarretada pelo andar gradativo do longa, o roteiro esculpe passo a
passo a personalidade de seu protagonista, tecendo o retrato de um homem
encouraçado pelo combate que evolui a medida que os conflitos internos ganham
proporções internacionais.
Quem se encarrega de incorporar essa turbulência
emocional é Timothée Chalamet. Passeando com brilhantismo pela variedade de emoções
apresentadas por seu personagem, o ator cresce junto da persona, indo do
amargor e apatia que Henrique exala como representação do rancor reprimido em
relação ao pai, até a austeridade que agrega as responsabilidades que compõem o
fardo de ser rei. Assim sendo, a atuação torna palpável para o telespectador a
insatisfação que este sente na posse de tal posto, tanto através do pesar com
que o mesmo fala, quanto pela constante expressão acabrunhada de alguém que não
quer estar ali e se vê consumido segundo após segundo. Todavia, apesar do
dissabor, Chalamet é fidedigno ao transmitir a alma de um homem idôneo que
prevalece firme e rijo conforme as exigências do cargo, sem jamais sucumbir às
próprias vontades. Essa divergência entre o desejo e o dever marcam uma
performance calcada na frequente omissão de sentimentos que é mais difícil de
encenar do que parece, como, por exemplo, durante os momentos em que Hal quer
chorar por conta de uma perda, mas não pode porque ele tem uma figura a zelar;
são essas sutilezas de detalhes que enriquecem exponencialmente o desempenho de
um artista.
No que remete às demais atuações, Robert
Pattinson se destaca. Intérprete do príncipe Louis, Pattinson vive com imane proficiência
um indivíduo petulante, zombeteiro, repleto de maneirismos e detentor de uma
malícia latente. Suas ações são sempre desdenhosas, e as peculiaridades de sua
fala, revestidas por um sotaque francês, apenas enaltecem seu caráter
debochado. Sean Harris, por sua vez, conquista facilmente a confiança do
assistente com um ar sábio e circunspecto, enquanto Joel Edgerton, ademais de
bastante carismático, é o que mais se aproxima de um pontual alívio cômico.
Tocante ao visual, O Rei é uma obra belíssima
de se assistir. O design de produção denota preocupação com o esmero estético
das formalidades da corte, exprimindo, em decorrência, toda a pompa que delineia
os requintes da realeza, indo de fartos banquetes até os lauréis que imbuem uma
cerimônia de coroação. As cenografias são vistosas e emolduram o espírito bucólico
de uma Inglaterra quatrocentista; o figurino, extremamente garboso, delata o
dia-a-dia faustoso daqueles entorno de Sua Majestade, e a fotografia apurada dá
vida a imagens pulpérrimas. A trilha, por sua vez, respalda o âmbito óptico,
seja evocando a atmosfera de um grande épico ou externando os sentimentos
predominantes em tela.
Por fim, a película, já em seus minutos
derradeiros, arquiteta uma reviravolta surpreendente que impressiona pela desconstrução
de parâmetros até então tidos como axiomas. No mais, o corte final do filme é
no instante perfeito.
O Rei, em suma, é tecnicamente refinado, possui
atuações deslumbrantes e uma estória baseada na legitimidade de seus conflitos.
Matheus J. S.
Assista e Kontamine-se
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Ficha Técnica:
Data de lançamento (Netflix): 1
de novembro de 2019
Direção: David Michôd
Elenco: Timothée Chalamet, Robert
Pattinson, Joel Edgerton…
Gênero: Drama
Nacionalidades: Reino Unido e
Hungria
Sinopse (Adoro Cinema):
Após a morte de seu pai, Henrique V (Timothée
Chalamet) é coroado rei, obrigado a comandar a Inglaterra. O governante precisa
amadurecer rapidamente para manter o país consideravelmente seguro durante a
Guerra dos 100 Anos, contra a França.
Avaliação:
IMDb: 7,3
Rotten:
72%
Metacritic:
61%
Filmow
(média geral): 3,4
Adoro
Cinema (usuários): 3,6
Kontaminantes
(Matheus J. S.): 10
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