O período escravocrata é um dos episódios mais
pútridos e chocantes da história da humanidade, isto é indubitável. Mediante o
racismo que ainda predomina sobre pessoas unidimensionais e preconceituosas,
este é um tema que não deixa de ser extremamente contemporâneo, frequentemente
discutido em mídias sociais, documentários... e no cinema. Enfim, 12 Anos de
Escravidão é mais um que se apropria de tal pauta.
Baseado em fatos, a história contada em 12 Anos
de Escravidão, não bastasse o denso contexto, ganha ainda maior realce pelo
aspecto ressaltado. Seus primórdios, que se alternam entre takes da vida de
Solomon como um homem livre e como um escravo, servem para ratificar o impacto
das circunstâncias calamitosas em que o personagem se encontra, além de conceber
o desalento contraste da percepção de Solomon entre o que foi e o que é. Logo
no início do filme o espectador também se vê apresentado à figura do Ford, um
senhor de escravos gentil que se apieda das situações de seus semelhantes, mas
que se vê partilhando e contribuindo para continuidade daquela vida e que nada
faz a respeito por conta dos paradigmas sociais vigentes, o que incumbe
interessantes reflexões de teor moral e ético ao assistente.
12 Anos de Escravidão, como uma produção
similar faria de praxe, também se aprofunda no horror da época em retrato.
Embora bastante violento, com sequências de pura angústia que clamam compaixão,
este não é um longa que se aproveita da violência manipulativa para
sensibilizar seu público, mas sim de fatores sugestivos e da naturalidade com
que os eventos estarrecedores se desenvolvem sob panorama dos brancos. Seja no
levar de um negro para longe, as cicatrizes que lhe tomam o corpo, a melancolia
que lhes assola com o passar do tempo imutável em suas vidas, na tensão ocasionada
pela equívoca execução de uma tarefa diária passível de dolorosa punição... ou
na forma com que seus corpos são objetificados, no modo banal com que seus
sentimentos são vistos, na maneira animalesca e ignorante com que são tratados
vivos ou mortos... é uma película crua e brutal tanto em perspectiva visual quanto comportamental.
De elenco grandioso e renomado, 12 Anos de
Escravidão é protagonizado de um lado por Solomon vivido por Chiwetel Ejiofor, este
que interpreta brilhantemente a transformação de um homem obstinado e rebelde a
um completo serviçal que se vê amargamente envolto por aquele mundo, mas que
interiormente ainda mantém esperanças e o espírito civilizado, e do outro por
Edwin Epps, magistralmente incorporado por Michael Fassbender que adere a seu
personagem requintes lunáticos e uma personalidade inflexível, maldosa e maliciosa
que, no tempo que Chiwetel tem seu trabalho realçado pelo palpável trabalho de
expressões faciais martirizadas, Fassbender salienta seu caráter por meio de
olhares perversos, frases permeadas por seu senso de menosprezo e superioridade
e atitudes nefastas. Enquanto Solomon simboliza a esperança, Epps representa o
exaspero e o desconsolo. As atuações de Lupita Nyong'o e Sarah Paulson também
merecem ênfase. Sarah, como Mary Epps, desempenha um papel símil a de seu marido, mas que se sobressai principalmente pelo ciúme, inveja e ódio
intrínseco a seu âmago deteriorado. Já Lupita, como Patsey, tem uma performance
bastante corajosa, de submissão e insurgência simultânea, constantemente alvo
de torturas, maus-tratos e lancinantes degradações físicas e emocionais.
Tecnicamente falando, o filme igualmente não se
deixa para trás. Ao optar por extensos planos-sequência, o longa imprime maior
genuinidade a sua trama, se destacando, próximo ao fim, uma tomada de textura
visceral e direção impecável, onde, durante um intenso castigo, a câmera ronda
o ambiente e captura distintas óticas do acontecimento, seja Edwin como um
carrasco movido pela fúria, Solomon atônito, desesperado e em impotente aflição,
Mary em pernicioso regozijo de suas próprias ações e Patsey em extrema dor,
humilhação e sofrimento. A trilha sonora, tanto extradiegética quanto a
diegética cantada pelas personagens, é enternecedora, e a fotografia, em sublinho
dos cenários bucólicos, das sofisticadas mansões e da miséria que acerca as
vivências dos escravos, é belíssima e se coopera ao figurino característico e o
design se produção detalhadamente real.
Em meio a suas acometidas reflexivas, a
película tem passagens que enaltecem a Bíblia como justificativa para os revoltantes
atos vistos em tela, outra boa alfinetada que também remete ao passado no que
diz respeito ao “direito divino dos reis” e que de forma semelhante encontra seu
espaço nos dias de hoje. Em contraparte, ao tentar expor uma visão igualitária
e crítica aos métodos racistas em destaque, o entrecho se mostra demasiado
compelido e expositivo. Não precisava de um personagem bonzinho e
diferentão que vocaliza tudo que já está sendo expresso e digerido apenas por
imagens e situações rotineiras.
No mais, 12 Anos de Escravidão é um filme
forte, pungente e que mesmo sem ser original, é muito bom.
Matheus J. S.
Assista e Kontamine-se
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Leia Também:
Ficha Técnica (Adoro Cinema):
Data de lançamento (Brasil): 21
de fevereiro de 2014 (2h 13min)
Direção: Steve McQueen (II)
Elenco: Chiwetel Ejiofor, Michael
Fassbender, Benedict Cumberbatch…
Gêneros: Drama; Histórico
Nacionalidade: EUA
Sinopse (Google):
Em 1841, Solomon Northup é um negro livre, que
vive em paz ao lado da esposa e filhos. Um dia, após aceitar um trabalho que o
leva a outra cidade, ele é sequestrado e acorrentado. Vendido como se fosse um
escravo, Solomon precisa superar humilhações físicas e emocionais para
sobreviver. Ao longo de doze anos, ele passa por dois senhores, Ford e Edwin
Epps, que, cada um à sua maneira, exploram seus serviços.
Avaliação:
IMDb:
8,1
Rotten:
96%
Metacritic:
96%
Filmow
(média geral): 4,3
Adoro Cinema
(usuários/adorocinema): 4,6/4,5
Kontaminantes (Matheus J. S.): 9
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