Enquanto o fim de 2018, de praxe, propiciava a
criação de listas com as melhores atrações do ano, a Netflix, seis dias antes
da virada, surpreendeu a todos com a distribuição no Brasil de Você. Embora
tenha sido tarde para muitos a incluírem em suas listagens, quem mais se
beneficiou foi o público que pode desfrutar o Réveillon assistindo uma das
melhores estreias do ano.
Unificando típicos elementos de
produções teen, comédias românticas e melodramas da Sessão da Tarde,
Você, a princípio, não inspira expectativas sobre algo maior, porém de prontidão fisga o
espectador com uma trama contagiante e apetecível. Entretanto, é esta narrativa
descontraída e, aparentemente, calcada num simples conto de amor, que permite o
enredo ganhar dimensões e abordar, com a devida cadência, contextos de
verdadeira relevância social. O que começa como uma bonitinha estória entre
duas almas gêmeas, tem um desfecho sombrio e inevitável.
Para construção da narrativa "leve" e
cativante, a série usufrui de uma narração em voice over do protagonista
que faz com que o público assista ao programa sob a perspectiva do mesmo e a
compreenda, por mais absurda que possa parecer. Isto é, Você continua prezando
o bom humor conforme a naturalidade com que se efetuam as ações de Joe, mesmo
quando o comportamento deste foge dos padrões universalmente aceitos de
normalidade. Ademais, a produção é bastante eficaz ao desfrutar deste artifício
para quebras cômicas, como acontece quando Joe toma atitudes habitual e
socialmente condenáveis gerando extrema vergonha alheia, ou quando Joe julga
segundos por algo similar ao que ele tenha feito, mesmo que o próprio não tenha
consciência disto, o que é propositalmente irônico.
Ainda referente ao viés cômico, Você
esporadicamente utiliza como ferramenta o âmbito imaginativo de Joe, o que
resulta num contraste jocoso com a realidade. Falando em contraste, isso
igualmente ocorre, de forma hilária, quando o programa opta por expor a visão
antagônica de Joe e Beck sobre uma mesma circunstância, ou quando ambos pensam algo
e verbalizam exatamente o contrário. Ademais, a série arranca muitas risadas
quando desconstrói, de modo inventivo e inesperado, situações tipicamente
românticas de filmes e novelas. Este é um dos grandes charmes de Você, a
confecção de pequenos detalhes que transformam aquilo várias vezes visto em
algo novo e surpreendente.
Os personagens são todos muito bem moldados e
desenvolvidos. Ou seja, além do programa ser sob a ótica do Joe, o assistente é
convidado a explorar o passado do mesmo por meio de sucintos flashbacks
que ajudam o espectador a desvendar sua idiossincrasia. Com relação à Beck, o
público é engajado ao drama da moça a partir do quarto episódio, quando esta,
também consoante o recurso do voice over - que tem como intuito
espairecer tudo aquilo que não é verbalizado e acentuar a relação do assistente
com a mesma -, tem a personalidade e os conflitos ampliados. O plot da
personagem lhe adere textura e possibilita um genuíno estudo do núcleo familiar
que tem como pauta, dentre os conceitos debatidos, o uso de máscaras na
concepção do caráter em sociedade, que é um dos focos do discurso da série. Já
Peach, uma das coadjuvantes, embora a princípio simplesmente chata e
dispensável, posteriormente passa a integrar o arco principal de forma curiosa
e relevante.
Adjacente a esfera central, há uma subtrama
envolvendo um casal e uma criança que, apesar de inicialmente deslocada, logo
passa a fazer sentido e dialogar com as diretrizes do programa ao fornecer um
panorama sobre outro relacionamento tão doentio quanto ao destrinchado
primordialmente. Referente ao restante das figuras de apoio, todos são
operantes, sem grandes destaques especiais.
Em meio à miscigenação de gêneros proposta pelo
programa, tais como romance, comédia e drama, o suspense também encontra seu
espaço, exponencialmente com as inúmeras citações a Candace, persona que agrega
os maiores mistérios do entrecho e serve como alicerce para o embasamento de
Joe e seu modus operandi. Este respectivo embasamento muito tem a dizer
sobre o tema da série: obsessão. Em outras palavras, comuns são as indagações
impostas por Você recorrentes a esta vertente, como: quando o "amor"
se torna uma doença? Tudo o que Joe fez foi por amor, ou o amor é somente um
pretexto para suas controversas atitudes?
Sagaz e atual em suas empreitadas, Você tece
comentários importantes acerca da contemporaneidade, intertextualizando
discussões que abrangem a artificialidade da vida moderna, suscetibilidade nas
redes sociais e dissimulação de identidade. A maneira com que o programa interpreta
os relacionamentos amorosos, além do desenvolvimento orgânico, se mostra
igualmente crítica e verossímil, seja no distanciamento invisível que muitas
vezes há em uma relação, seja nos dilemas intrínsecos a tal vínculo.
É patente que todos os fatores até então
ressaltados não exerceriam a mesma efetividade se não fossem respaldados por
excelentes atuações. Penn Badgley, como Joe, vai do bom e afetuoso moço a
insano e paranoico em instantes, tanto com seu olhar psicótico e ameaçador,
quanto com suas expressões faciais que, em casos de oposição, denotam gritante
furor e instabilidade. Elizabeth Lail, como Beck, incorpora com primor os
confrontos internos de sua persona, bem como a confusão inerente as decisões
impreteríveis de sua jornada e os sentimentos dúbios que seu namoro com Joe
desperta. Já Shay Mitchell, na pele de Peach, convence como uma ricaça
arrogante, mas que lá no fundo esconde segredos mais emotivos do que gostaria
de admitir.
Com uma trilha sonora presente e enérgica,
ritmo instigante e um fecho plausível ao conteúdo apresentado, Você, apesar dos
deslizes com facilitações e conveniências narrativas, propõe, com carisma e
eficácia, temas importantes que merecem ser refletidos. Você é com certeza uma
das melhores atratividades recentemente inoculadas à Netflix.
Matheus J. S.
Assista e Kontamine-se
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Ficha Técnica:
Primeiro episódio: 9 de setembro
de 2018
Criado por: Sera Gamble e Greg
Berlanti
Com: Penn Badgley, Elizabeth
Lail, Shay Mitchell…
País: EUA
Gêneros: Drama; Romance
Status: Renovada
Duração (aproximadamente): 45
minutos
Sinopse:
Quando Joe, gerente de uma livraria, se
apaixona pela aspirante a escritora Guinevere Beck, ele passa a não medir
esforços para tê-la em seus braços.
Avaliação (1ª Temporada):
IMDb
(2018- ): 8,1
Rotten:
89%
Metacritic:
74%
Filmow
(média geral): 3,8
Adoro
Cinema (usuários): 4,1
Kontaminantes (Matheus J. S.): 9
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