25 de outubro de 2019

Kontaminantes ☣ , Coringa , Drama-filme , Filmes ,

Coringa

Pôster


Usar de hipérboles para classificar um filme geralmente não é visto com bons olhos, especialmente por se tratar de um recurso fácil e de simples execução. Entretanto, discorrer sobre Coringa sem utilizar os devidos adjetivos que o longa merece seria uma heresia maior ainda, afinal, estamos falando sobre uma obra que figura como a deslumbrante apoteose audiovisual de 2019.
Escrita de forma totalmente original, a película, diferentemente de outras versões cinematográficas do célebre vilão norteadas por algum tipo de material fonte, não se embasa em HQs ou estórias fabricadas de antemão para desenvolver seu enredo. Embora fato que nomenclaturas e referências surjam aos montes no longa, tais itens são uma mera piscadela para o público, haja visto que uma das grandes virtudes da obra encontra-se na criatividade de sua trama, fornecendo uma nova ótica para o nascimento do icônico Palhaço do Crime mesmo com as inúmeras perspectivas já existentes. Não obstante, realça-se a ousadia da produção sobre quatro pontos essenciais: revitalizar o gênero atribuindo-lhe novo frescor tonal; lidar com a responsabilidade de mexer com o legado de um sujeito que se imortalizou nas telonas com a extraordinária performance de Heath Ledger, ainda mais após o desastre que foi o Coringa de Jared Leto em Esquadrão Suicida; criar um filme solo desvinculado do Universo Estendido DC, isso sem mencionar a crise e fortíssima concorrência que o mesmo vem enfrentando; e pouco se importar com a receptividade de espectadores fascinados por quadrinhos ou mais sensíveis a um texto cru e desglamourizado.
Envolto por polêmicas, Coringa, todavia, é uma obra notória por conta da eficácia com que trabalha seus atributos. A priori, é imprescindível exaltar o minucioso estudo de personagem concebido pela película, este que se desenvolve gradualmente convidando o assistente a acompanhar a martirizante transformação de Arthur Fleck em Coringa. Grifada por aflição, a jornada é substancialmente autêntica, estabelecendo, por conseguinte, um forte laço com o público alicerçado nas semelhanças dos mundos que ambos vivem; é essa ausência de eufemismos narrativos que torna a experiência tão palpável e assustadora para o espectador, afinal, todos vivenciam ou estão suscetíveis de vivenciar os mesmos infortúnios vistos em tela. Sobretudo, é por meio destes que o filme justifica o nascimento de um monstro social, expondo a vulnerabilidade humana e escrutinando, de modo assaz orgânico, os limites de tolerância e sanidade de um homem. Em outras palavras, Arthur, muito mais que um mero vilão unilateral, é um indivíduo de motivações plausíveis e convincentes que, nas entrelinhas do texto, representa o potencial destrutivo de todo uma grege rejeitada, esquecida e abandonada, ou seja, o Coringa pode ser qualquer um.
Outrossim, a complexidade inerente ao cerne do protagonista permite o entrecho destrinchar de incontáveis maneiras as multifacetas deste. Isto é, a risada involuntária do personagem, por exemplo, é manipulada pelo roteiro a servir como enfática ferramenta no molde da personalidade de Arthur, seja primordialmente como um empecilho em sua vida, seja posteriormente como marca emblemática do novo aspecto incorporado. Já os trechos em que o personagem dança, bastante comuns ao correr do longa, funcionam como válvula do aprazer sentido pelo mesmo; há uma sequência (brilhante, por sinal) isenta de falas, sutil e alegórica, onde a câmera, através de suaves movimentos manuais sem cortes, passeia pelo corpo do astro em sintonia ao êxtase externado. Por sua vez, a película possui uma série de blocos em que sua figura central, sem explicação alguma, tem atitudes estranhas e irracionais, estas articuladas como catarse arbitrária dos sentimentos do personagem, onde qualquer argumentação para as mesmas soaria errôneo e presunçoso. Adicionalmente aos respectivos tópicos, acentua-se a subtrama do relacionamento entre Arthur e a vizinha Sophie, subtrama que, embora a princípio desconexa e compelida, mostra-se pertinente ao arco principal e cimenta um degrau a mais na construção da psicose do protagonista. Aliás, as demais reviravoltas desdobram-se com similar intuito, além de serem todas críveis e muito bem elaboradas.
Ainda concernente as características idiossincráticas de Fleck, dois fatores cruciais não podem ser menosprezados: o âmbito familiar do personagem e sua obsessão por reconhecimento. Timbrada por traumas, a infância de Arthur é responsável por influenciar veementemente sua instabilidade mental, o que o script maneja, mediante insinuações e breves flashbacks, visando explorar as consequências diretas na conceição do caráter de um adulto, abrangendo, portanto, os efeitos causados por um lar domiciliar agressivo, a ausência de uma figura paterna e as incertezas que rondam o próprio passado e concepção. Nesse sentido, Coringa, ao longo de seus dois primeiros atos, é uma laboriosa jornada de autoconhecimento calcada na incessante busca de um homem por identidade, um homem desamparado, miserável, solitário e que desde sempre foi desprezado. Ou seja, consoante a falta de visibilidade que acerca a persona, a necessidade que esta tem por ser ouvida e por se sentir integrada não gera surpresas, necessidade que se manifesta até na profissão escolhida pela mesma (palhaço/comediante). Desse modo, destaca-se uma cena em particular na qual o protagonista tem sua imagem ridicularizada por conta de um vídeo viralizado de uma apresentação sua, vertente que o filme aproveita para tecer alfinetadas a indústria midiática suja e manipulativa e fazer paralelo a quantidade exacerbada de programas que prezam, prioritariamente, a humilhação de pessoas aleatórias em prol de um prazer popular nefasto e momentâneo.
No entanto, dissertar sobre Coringa sem enaltecer o desempenho cênico de Joaquin Phoenix é impossível. Desde as mínimas feições até uma completa entrega física que se salienta na perca de peso (23 kg, para ser exato) em um curto espaço de tempo, a performance transparece com enorme fidelidade a angústia existencial do personagem, seja em suas constantes expressões amarguradas, seja no habitual modo torto de se caminhar. Pontuada por trejeitos, a atuação corrobora a análise comportamental ministrada pelo roteiro, o que se sobressai nas corridas desengonçadas de Arthur simbolizando sua deslocação social, e na cabeça dependurada que delineia uma personalidade oprimida e acuada. Da mesma maneira, destaca-se o furor e o regozijo da persona, além, é claro, dos infames segmentos em que Fleck tem crises de riso, mescladas a soluços e choro, mesmo tomado por sentimentos contrários; são passagens que requerem imensa devoção, destreza e legitimidade, afinal, o cineasta tem que atuar fazendo algo e, ao mesmo tempo, transmitir emoções completamente opostas, ademais da difícil tarefa de ludibriar o espectador a crer que aquilo não se trata de simples encenação, e Phoenix o faz com primor. Impreterivelmente, convém frisar a transmutação de Arthur em Coringa e as drásticas mudanças correntes, estas que influenciam diretamente a forma do personagem andar, passando a ser mais ereta e imponente, e seu comportamento como um todo que exprime, finalmente, a alma de um homem liberto e em conformidade consigo mesmo.
Em relação à cenografia, Gotham é enfatizada como uma conturbada personagem. Muito além de um simples palco, a cidade ganha vida materializando uma sociedade doentia e polarizada, esta repleta de ódio, violência e apatia, elementos que, entre as diversas abordagens do filme, sintetizam uma cáustica alusão a contemporaneidade, onde se vive uma era desprovida de amor, gentileza, solidariedade e complacência. Ademais, esse caráter é personificado até em esfera política, esta usada como intermédio para pautas vinculadas à corrupção, segregação de classes, injustiça social e negligência de Estado. Visualmente, tal espírito ignóbil é retratado no formato de ambientes caóticos, escuros, cinzentos, sórdidos e esfumaçados. No mais, cabe ressaltar que o longa, frente aos famigerados temas debatidos, acarreta a repulsa de um determinado público que condena o tom adotado e, principalmente, a violência não estilizada. Contudo, é interessante sublinhar que tais alegações são fundamentadas no espanto perante a verossimilhança assistida em tela e a postura de impassibilidade dos mesmos respaldada na ignorância autoindulgente como mecanismo de defesa para uma não aceitação da realidade.
A propósito, a violência gráfica e explícita da obra é recrutada somente em momentos concisos, exercendo impacto sobre o assistente em função da inserção abrupta, o contexto em que são inoculadas e a ausência de plumas em sua montagem. Em contrapartida, o humor, convocado com bastante pontualidade, serve como refrigério bem-vindo ao advir e preceder sequências mais densas; é uma comicidade ardilosa, que deixa o espectador nervoso e sentindo-se culpado. Além do flerte com a comédia, a película igualmente se aventura por outros gêneros, fazendo-o com imane êxito. Elencando-os, em primeiro lugar fica o drama que se mantém imbuído em todas as camadas do script, iterado pelo uso de planos estreitos e faciais que objetivam extrair o máximo de dor da tela. Seguido de perto está o terror, que tem seu espaço durante uma cena envolvendo um trem, alcançando o ápice de seu assombro conforme o contexto chocante em que é inserido e o fabuloso jogo de luz e sombras que incrementa o trecho à la os maiores nomes do gênero. Como adendo, há um pequeno plot policial que existe apenas para mostrar que o protagonista não é intocável diante das autoridades e ratificar uma incompetência das forças governamentais no cenário fictício vigente.
No que remete a exposição, o filme se estende por explicações só quando necessário, deixando-se ambíguo em arremetidas mais perspicazes que fomentam a criação de múltiplas interpretações. Por fim, a trilha é um deleite sonoro. Praticamente toda instrumental, esta é enervante, melancólica e retumbante, sendo que as músicas cantadas se vangloriam de letras que casam perfeitamente com os acontecimentos difundidos ao público. Ademais, a mudança tonal arquitetada pela mesma é magnificente, indo do lúdico, que reflete a nova perspectiva deturpada do personagem sobre o mundo, até requintes mais graves, que ilustram a ameaça intrínseca ao vilão.
Em suma, Coringa é um filme genial, ou seja, uma OBRA-PRIMA!
Matheus J. S.  10
                                                                                                                                                                            
Desta vez vemos a história pelos olhos do suposto vilão, presenciamos a sua origem, a revisceração de uma pessoa inofensiva e desiludida, oprimida e menosprezada pela sociedade em um novo homem, este um assassino reconhecido por todos, idolatrado por alguns e repugnado por outros; vemos, então, a transformação de Arthur Fleck em Coringa.
Esta nova versão do Palhaço do Crime não se submete a pequenas mudanças do personagem conhecido pelo público, na maior parte ele é um personagem totalmente novo. Diferentemente do vilão de histórias em quadrinhos - o assassino frio e meticuloso - que nós conhecemos, neste filme o Coringa é humanizado de um jeito brilhante, sendo seus atos resultado de uma vida inteira de sofrimento, influenciados pelos seus sentimentos melancólicos e de raiva.
O longa possui um cenário bem interessante, que nos faz entender bem como seria uma Gothan naquela época (mesmo a película não deixando claro em que ano a trama se passa), sendo tanto admirável visualmente, quanto extremamente favorável aos acontecimentos em tela. Além disso, também devemos dar mérito à fotografia, pelo realce das cores quentes e a luminosidade do ambiente, na maioria das vezes escuro e preenchido por sombras, mas de uma forma balanceada, sem deixar difícil o telespectador entender o que está acontecendo. Todos estes detalhes deixam o filme mais atraente e com uma identidade própria. Vale salientar que a escolha para o novo visual do Coringa foi excelente, além de se encaixar muito bem com o restante do cenário, tanto pelas cores de suas roupas serem justamente cores quentes e por seus trajes remeterem a algo mais antigo, deixando sua persona mais pujante e com uma personalidade complexa.
Coringa, sem sombra de dúvidas, é uma obra fascinante e que merece ser assistida. Acredito que o filme não incentiva a violência e vai deixar no máximo o público incomodado, então se você está à procura de um bom filme e fora dos padrões convencionais, este com certeza merece sua atenção.
Murillo J. S.  10

Assista e Kontamine-se

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Ficha Técnica:
Data de lançamento (Brasil) 3 de outubro de 2019
Direção: Todd Phillips
Elenco: Joaquin Phoenix, Robert De Niro, Zazie Beetz…
Gênero: Drama
Nacionalidades: EUA e Canadá

Sinopse (Google):
O comediante falido Arthur Fleck encontra violentos bandidos pelas ruas de Gotham City. Desconsiderado pela sociedade, Fleck começa a ficar louco e se transforma no criminoso conhecido como Coringa.

Avaliação:
IMDb: 8,9
Rotten: 69%
Metacritic: 59%
Filmow (média geral): 4,6
Adoro Cinema (usuários/adorocinema): 4,6/5,0
Kontaminantes (média): 10
Avaliação

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