Usar de hipérboles para classificar um filme
geralmente não é visto com bons olhos, especialmente por se tratar de um
recurso fácil e de simples execução. Entretanto, discorrer sobre Coringa sem
utilizar os devidos adjetivos que o longa merece seria uma heresia maior ainda,
afinal, estamos falando sobre uma obra que figura como a deslumbrante apoteose
audiovisual de 2019.
Escrita de forma totalmente original, a
película, diferentemente de outras versões cinematográficas do célebre vilão
norteadas por algum tipo de material fonte, não se embasa em HQs ou estórias
fabricadas de antemão para desenvolver seu enredo. Embora fato que
nomenclaturas e referências surjam aos montes no longa, tais itens são uma mera
piscadela para o público, haja visto que uma das grandes virtudes da obra
encontra-se na criatividade de sua trama, fornecendo uma nova ótica para o
nascimento do icônico Palhaço do Crime mesmo com as inúmeras perspectivas já
existentes. Não obstante, realça-se a ousadia da produção sobre quatro pontos
essenciais: revitalizar o gênero atribuindo-lhe novo frescor tonal; lidar com a
responsabilidade de mexer com o legado de um sujeito que se imortalizou nas
telonas com a extraordinária performance de Heath Ledger, ainda mais após o
desastre que foi o Coringa de Jared Leto em Esquadrão Suicida; criar um filme
solo desvinculado do Universo Estendido DC, isso sem mencionar a crise e
fortíssima concorrência que o mesmo vem enfrentando; e pouco se importar com a
receptividade de espectadores fascinados por quadrinhos ou mais sensíveis a um
texto cru e desglamourizado.
Envolto por polêmicas, Coringa, todavia, é uma
obra notória por conta da eficácia com que trabalha seus atributos. A priori, é
imprescindível exaltar o minucioso estudo de personagem concebido pela
película, este que se desenvolve gradualmente convidando o assistente a
acompanhar a martirizante transformação de Arthur Fleck em Coringa. Grifada por
aflição, a jornada é substancialmente autêntica, estabelecendo, por
conseguinte, um forte laço com o público alicerçado nas semelhanças dos mundos
que ambos vivem; é essa ausência de eufemismos narrativos que torna a
experiência tão palpável e assustadora para o espectador, afinal, todos
vivenciam ou estão suscetíveis de vivenciar os mesmos infortúnios vistos em
tela. Sobretudo, é por meio destes que o filme justifica o nascimento de um
monstro social, expondo a vulnerabilidade humana e escrutinando, de modo assaz
orgânico, os limites de tolerância e sanidade de um homem. Em outras palavras,
Arthur, muito mais que um mero vilão unilateral, é um indivíduo de motivações
plausíveis e convincentes que, nas entrelinhas do texto, representa o potencial
destrutivo de todo uma grege rejeitada, esquecida e abandonada, ou seja, o
Coringa pode ser qualquer um.
Outrossim, a complexidade inerente ao cerne do
protagonista permite o entrecho destrinchar de incontáveis maneiras as
multifacetas deste. Isto é, a risada involuntária do personagem, por exemplo, é
manipulada pelo roteiro a servir como enfática ferramenta no molde da
personalidade de Arthur, seja primordialmente como um empecilho em sua vida,
seja posteriormente como marca emblemática do novo aspecto incorporado. Já os
trechos em que o personagem dança, bastante comuns ao correr do longa, funcionam
como válvula do aprazer sentido pelo mesmo; há uma sequência (brilhante, por
sinal) isenta de falas, sutil e alegórica, onde a câmera, através de suaves
movimentos manuais sem cortes, passeia pelo corpo do astro em sintonia ao
êxtase externado. Por sua vez, a película possui uma série de blocos em que sua
figura central, sem explicação alguma, tem atitudes estranhas e irracionais,
estas articuladas como catarse arbitrária dos sentimentos do personagem, onde
qualquer argumentação para as mesmas soaria errôneo e presunçoso.
Adicionalmente aos respectivos tópicos, acentua-se a subtrama do relacionamento
entre Arthur e a vizinha Sophie, subtrama que, embora a princípio desconexa e
compelida, mostra-se pertinente ao arco principal e cimenta um degrau a mais na
construção da psicose do protagonista. Aliás, as demais reviravoltas
desdobram-se com similar intuito, além de serem todas críveis e muito bem
elaboradas.
Ainda concernente as características
idiossincráticas de Fleck, dois fatores cruciais não podem ser menosprezados: o
âmbito familiar do personagem e sua obsessão por reconhecimento. Timbrada por
traumas, a infância de Arthur é responsável por influenciar veementemente sua
instabilidade mental, o que o script maneja, mediante insinuações e
breves flashbacks, visando explorar as consequências diretas na
conceição do caráter de um adulto, abrangendo, portanto, os efeitos causados
por um lar domiciliar agressivo, a ausência de uma figura paterna e as
incertezas que rondam o próprio passado e concepção. Nesse sentido, Coringa, ao
longo de seus dois primeiros atos, é uma laboriosa jornada de autoconhecimento
calcada na incessante busca de um homem por identidade, um homem desamparado,
miserável, solitário e que desde sempre foi desprezado. Ou seja, consoante a falta
de visibilidade que acerca a persona, a necessidade que esta tem por ser ouvida
e por se sentir integrada não gera surpresas, necessidade que se manifesta até
na profissão escolhida pela mesma (palhaço/comediante). Desse modo, destaca-se
uma cena em particular na qual o protagonista tem sua imagem ridicularizada por
conta de um vídeo viralizado de uma apresentação sua, vertente que o filme
aproveita para tecer alfinetadas a indústria midiática suja e manipulativa e
fazer paralelo a quantidade exacerbada de programas que prezam,
prioritariamente, a humilhação de pessoas aleatórias em prol de um prazer
popular nefasto e momentâneo.
No entanto, dissertar sobre Coringa sem
enaltecer o desempenho cênico de Joaquin Phoenix é impossível. Desde as mínimas
feições até uma completa entrega física que se salienta na perca de peso (23 kg,
para ser exato) em um curto espaço de tempo, a performance transparece com
enorme fidelidade a angústia existencial do personagem, seja em suas constantes
expressões amarguradas, seja no habitual modo torto de se caminhar. Pontuada
por trejeitos, a atuação corrobora a análise comportamental ministrada pelo
roteiro, o que se sobressai nas corridas desengonçadas de Arthur simbolizando
sua deslocação social, e na cabeça dependurada que delineia uma personalidade
oprimida e acuada. Da mesma maneira, destaca-se o furor e o regozijo da
persona, além, é claro, dos infames segmentos em que Fleck tem crises de riso,
mescladas a soluços e choro, mesmo tomado por sentimentos contrários; são
passagens que requerem imensa devoção, destreza e legitimidade, afinal, o
cineasta tem que atuar fazendo algo e, ao mesmo tempo, transmitir emoções
completamente opostas, ademais da difícil tarefa de ludibriar o espectador a
crer que aquilo não se trata de simples encenação, e Phoenix o faz com primor.
Impreterivelmente, convém frisar a transmutação de Arthur em Coringa e as
drásticas mudanças correntes, estas que influenciam diretamente a forma do
personagem andar, passando a ser mais ereta e imponente, e seu comportamento
como um todo que exprime, finalmente, a alma de um homem liberto e em
conformidade consigo mesmo.
Em relação à cenografia, Gotham é enfatizada
como uma conturbada personagem. Muito além de um simples palco, a cidade ganha
vida materializando uma sociedade doentia e polarizada, esta repleta de ódio,
violência e apatia, elementos que, entre as diversas abordagens do filme,
sintetizam uma cáustica alusão a contemporaneidade, onde se vive uma era
desprovida de amor, gentileza, solidariedade e complacência. Ademais, esse
caráter é personificado até em esfera política, esta usada como intermédio para
pautas vinculadas à corrupção, segregação de classes, injustiça social e
negligência de Estado. Visualmente, tal espírito ignóbil é retratado no formato
de ambientes caóticos, escuros, cinzentos, sórdidos e esfumaçados. No mais,
cabe ressaltar que o longa, frente aos famigerados temas debatidos, acarreta a
repulsa de um determinado público que condena o tom adotado e, principalmente,
a violência não estilizada. Contudo, é interessante sublinhar que tais
alegações são fundamentadas no espanto perante a verossimilhança assistida em
tela e a postura de impassibilidade dos mesmos respaldada na ignorância autoindulgente
como mecanismo de defesa para uma não aceitação da realidade.
A propósito, a violência gráfica e explícita da
obra é recrutada somente em momentos concisos, exercendo impacto sobre o
assistente em função da inserção abrupta, o contexto em que são inoculadas e a
ausência de plumas em sua montagem. Em contrapartida, o humor, convocado com
bastante pontualidade, serve como refrigério bem-vindo ao advir e preceder
sequências mais densas; é uma comicidade ardilosa, que deixa o espectador
nervoso e sentindo-se culpado. Além do flerte com a comédia, a película
igualmente se aventura por outros gêneros, fazendo-o com imane êxito.
Elencando-os, em primeiro lugar fica o drama que se mantém imbuído em todas as
camadas do script, iterado pelo uso de planos estreitos e faciais que
objetivam extrair o máximo de dor da tela. Seguido de perto está o terror, que
tem seu espaço durante uma cena envolvendo um trem, alcançando o ápice de seu
assombro conforme o contexto chocante em que é inserido e o fabuloso jogo de
luz e sombras que incrementa o trecho à
la os maiores nomes do gênero. Como adendo, há um pequeno plot
policial que existe apenas para mostrar que o protagonista não é intocável
diante das autoridades e ratificar uma incompetência das forças governamentais
no cenário fictício vigente.
No que remete a exposição, o filme se estende
por explicações só quando necessário, deixando-se ambíguo em arremetidas mais
perspicazes que fomentam a criação de múltiplas interpretações. Por fim, a
trilha é um deleite sonoro. Praticamente toda instrumental, esta é enervante,
melancólica e retumbante, sendo que as músicas cantadas se vangloriam de letras
que casam perfeitamente com os acontecimentos difundidos ao público. Ademais, a
mudança tonal arquitetada pela mesma é magnificente, indo do lúdico, que
reflete a nova perspectiva deturpada do personagem sobre o mundo, até requintes
mais graves, que ilustram a ameaça intrínseca ao vilão.
Em suma, Coringa é um filme genial, ou seja,
uma OBRA-PRIMA!
Matheus J. S. 10
Desta vez vemos a história pelos olhos do
suposto vilão, presenciamos a sua origem, a revisceração de uma pessoa
inofensiva e desiludida, oprimida e menosprezada pela sociedade em um novo
homem, este um assassino reconhecido por todos, idolatrado por alguns e
repugnado por outros; vemos, então, a transformação de Arthur Fleck em Coringa.
Esta nova versão do Palhaço do Crime não se
submete a pequenas mudanças do personagem conhecido pelo público, na maior
parte ele é um personagem totalmente novo. Diferentemente do vilão de histórias
em quadrinhos - o assassino frio e meticuloso - que nós conhecemos, neste filme
o Coringa é humanizado de um jeito brilhante, sendo seus atos resultado de uma
vida inteira de sofrimento, influenciados pelos seus sentimentos melancólicos e
de raiva.
O longa possui um cenário bem interessante, que
nos faz entender bem como seria uma Gothan naquela época (mesmo a película não
deixando claro em que ano a trama se passa), sendo tanto admirável visualmente,
quanto extremamente favorável aos acontecimentos em tela. Além disso,
também devemos dar mérito à fotografia, pelo realce das cores quentes e a
luminosidade do ambiente, na maioria das vezes escuro e preenchido por sombras,
mas de uma forma balanceada, sem deixar difícil o telespectador entender o que
está acontecendo. Todos estes detalhes deixam o filme mais atraente e com uma identidade própria. Vale salientar que a escolha para o novo visual do
Coringa foi excelente, além de se encaixar muito bem com o restante do cenário,
tanto pelas cores de suas roupas serem justamente cores quentes e por seus
trajes remeterem a algo mais antigo, deixando sua persona mais pujante e com
uma personalidade complexa.
Coringa, sem sombra de dúvidas, é uma obra
fascinante e que merece ser assistida. Acredito que o filme não incentiva a
violência e vai deixar no máximo o público incomodado, então se você está à
procura de um bom filme e fora dos padrões convencionais, este com certeza
merece sua atenção.
Murillo J.
S. 10
Assista e Kontamine-se
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Ficha Técnica:
Data de lançamento (Brasil) 3 de
outubro de 2019
Direção: Todd Phillips
Elenco: Joaquin Phoenix, Robert
De Niro, Zazie Beetz…
Gênero: Drama
Nacionalidades: EUA e Canadá
Sinopse (Google):
O comediante falido Arthur Fleck encontra
violentos bandidos pelas ruas de Gotham City. Desconsiderado pela sociedade,
Fleck começa a ficar louco e se transforma no criminoso conhecido como Coringa.
Avaliação:
IMDb:
8,9
Rotten:
69%
Metacritic:
59%
Filmow
(média geral): 4,6
Adoro
Cinema (usuários/adorocinema): 4,6/5,0
Kontaminantes
(média): 10
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