Em uma época onde reboots, remakes,
adaptações literárias, filmes baseados em HQs e séries teen dominam o
cenário audiovisual, é mais que gratificante poder deliciar obras que desafiam
nossas mentes e se propõem a algo mais do que simplesmente entreter. Felizmente
Midsommar é um desses raros exemplares.
Sem delongas, Midsommar é uma obra que discute assuntos
atuais de maneira única e, sobretudo, utilizando uma linguagem bastante
peculiar. Isto é, para alicerçar o enredo o diretor (Ari Aster) conduz o espectador
aos recônditos da Suécia para desbravar um mundo completamente novo, este moldado
por componentes folclóricos excêntricos e inexplorados pelo grande público.
Nesse sentido, as particularidades que agregam a esdrúxula sociedade mostram-se
fundamentais para fomentar o desconforto do assistente, visto que a não
familiaridade deste serve como gatilho para seu estranhamento e incômodo frente
aos vários aspectos tradicionais da respectiva comunidade.
Outrossim, o roteiro é audacioso na construção desse
universo sem igual e na submersão continuamente inquietante do espectador. Ou seja,
este se apropria desde eventos simples (refeições) até os menos singelos (ritos
de passagem e cerimônias de acasalamento) para manter o público apreensivo durante
todo o tempo e afrontar os preceitos de normalidade e tolerância do mesmo. Reiterando,
destaca-se o espanto dos personagens perante a série de singularidades vistas
em tela que servem para acentuar o estarrecimento do próprio assistente.
Ademais, o longa também usa o visual grotesco de um de seus coadjuvantes para
testar mais uma vez os valores éticos e conceituais do espectador.
Pouco literal, Midsommar é uma produção de
caráter predominantemente especulativo. Dito isto, a direção porta-se com
perspicácia ao atribuir ênfase a determinadas coisas e deixar o público ruminando
sobre o porquê de tal enfoque. Para isso, é comum o uso de planos-detalhe que
exaltam a presença de algum objeto, além de planos com maior amplitude
panorâmica que sugestivamente exercem o contraste de uma unicidade do cenário
(como um urso enjaulado ou um templo amarelo) com o restante da paisagem. Esses
mesmos planos constituem pitorescas imagens que, respaldadas pela vivacidade
cenográfica, formam belíssimos e intrigantes enquadramentos.
Dentre os elementos que dão vida a esse mundo, convém
realçar o minucioso trabalho de caracterização cultural. Considerando que todas
as vertentes técnicas influenciam diretamente a respectiva concepção, a
película realiza uma hábil amostra de equilíbrio e sinergia ao fazê-las executarem
suas funções jamais de forma concorrente, mas sim de modo simultâneo e complementar.
Isto é, enquanto a cenoplastia responsabiliza-se por criar ambientações dionisíacas
que evocam uma atmosfera onírica, as vestimentas brancas transmitem um suspeito
sentimento de imaculidade e a trilha diegética composta por cantorias típicas mostra-se
tão enervante quanto os toques extradiegéticos, o longa transforma-se
gradualmente em um pesadelo fílmico de intenso grau imersivo e caos crescente.
Da mesma maneira, articula-se o fato da região
visitada pelos personagens nunca anoitecer completamente, o que possibilita a
película abordar métodos arrojados e diversos para desestabilizar o assistente.
Como sublinhado pelo tosco subtítulo recebido no Brasil (O Mal Não Espera a
Noite), o filme, ademais de despachar o ambiente noturno como palco narrativo (tão
habitual em produções de horror), igualmente subverte outras convenções do gênero
e investe no impacto psicológico da trama para embasá-la. Em outras palavras,
Midsommar é mais um integrante da recente leva de obras conhecida como
Pós-Terror, um movimento marcado por um forte viés dramático que objetiva amedrontar
seu público através de um engajamento emocional compacto despindo-se de estigmas
como recursos baratos que visam à conquista do susto fácil.
Estabelecido tais parâmetros, a película não
recorre à utilização de jumpscares ou outras ferramentas gratuitas,
acionando, em contraparte, artifícios que, além de todos aqueles supracitados,
molestam intimamente o espectador. Entre eles, cabe ressaltar a pontualidade
com que o filme recruta a violência gráfica, chocando o público por conta de
sua exposição cru, ríspida e impudica. É importante frisar que há quebra de paradigmas
até no modo escolhido para se fazer as filmagens (mérito do cinegrafista), haja
visto que o longa opta sempre por travellings calmos e passeios de câmera
sutis e pacientes, prevalecendo na contramão de produções que orbitam a mesma
esfera. No mais, a película periodicamente se propõe a arremetidas mais
intrépidas, concebendo segmentos de ponta-cabeça e brincando com a perspectiva
do assistente, colocando este sob a mesma distorção cognitiva que afeta as
figuras em tela decorrente do uso de certos entorpecentes; nesse quesito, o espectador
jamais tem convicções quanto ao que é ou não real.
A comicidade é outro fator que merece notoriedade.
Ainda que Midsommar seja um horror, o filme por vezes aposta em um humor ímpar
proveniente do absurdo de algumas cenas; é um humor que nasce do esquisito e bizarro,
provocando um riso arbitrário e automeditativo. Por outro lado, o personagem do
Will Poulter (Mark) efetua o contraponto leve do script, exercendo uma
jocosidade funcional e narrativamente bem-vinda.
Entretanto, nenhum dos itens até então
mencionados obteriam êxito se não fossem alicerçados por um sólido pano de fundo.
Tecido por metáforas e simbologias, o longa se propõe a debates relevantes que
condensam seu conteúdo em algo mais do que uma simples produção cinematográfica,
o que é feito de forma inteligente sem se tornar pretensioso e sem subestimar a
capacidade do público. Dessa maneira, o entrecho se enraíza em pautas que agregam
temas como luto, empatia, mágoa, solidão, sofrimento, perda, traição,
desamparo, aceitação e, principalmente, relacionamentos tóxicos. Concernente a
este, a película faz o assistente se indagar a partir de que ponto uma relação
passa a ser insustentável, além de inferir reflexões que abrangem os papeis e
responsabilidades que permeiam uma interação amorosa.
No mais, é imprescindível enaltecer o
desempenho cênico de Florence Pugh que calibra o texto e externa com consentaneidade
e proficiência toda a carga emocional deste. Performance calcada em dor e
martírio, a atriz transmite com muita autenticidade o calvário da personagem,
tornando-o palpável ao espectador e atribuindo maior densidade à experiência
como um todo. Contudo, ademais dos trechos que reverberam a angústia da
persona, Florence também exibe talento mediante a versatilidade de sentimentos que
o roteiro a impõe, transitando por facetas que se alternam entre resignada,
negligenciada e acolhida. Já no que se refere ao restante do elenco, todas as
atuações são ordinárias.
Em suma, Midsommar é um filme curioso,
perturbador, indigesto e autoral.
Matheus J. S.
Assista e Kontamine-se
Comente, Compartilhe e Siga Nosso Blog
Ficha Técnica:
Data de lançamento (Brasil): 19
de setembro de 2019
Direção: Ari Aster
Elenco: Florence Pugh, Jack
Reynor, Will Poulter...
Gênero: Terror
Nacionalidade: EUA
Sinopse (Google):
Dani e Christian formam um jovem casal
americano com um relacionamento prestes a desmoronar. Mas depois que uma
tragédia familiar os mantém juntos, Dani, que está de luto, convida-se para se
juntar a Christian e seus amigos em uma viagem para um festival de verão único
em uma remota vila sueca.
Avaliação:
IMDb:
7,3
Rotten:
83%
Metacritic:
72%
Filmow
(média geral): 3,7
Adoro
Cinema (usuários/adorocinema): 3,0/4,0
Kontaminantes
(Matheus J. S.): 9
Nenhum comentário:
Postar um comentário