A era de ouro da máfia nos cinemas ficou para
trás. Entretanto, Martin Scorsese, um dos maiores peritos do assunto que ainda
hoje se mantém em atividade, se mostra mais do que disposto a lembrar o mundo
do por que este é um gênero que ficará marcado para sempre nas telonas.
Com um esqueleto bastante similar a Cassino e
Os Bons Companheiros, O Irlandês apresenta um terreno com o qual Scorsese já
está familiarizado a desbravar. Em face disso, o filme usufrui de uma estrutura
que abdica da linearidade em prol de uma segmentação narrativa temporal que
visa oferecer um vislumbre do destino que o longa está tomando. Este é
inteiramente narrado por Frank que se comunica diretamente com o espectador, o
que, em consonância a montagem frenética (irei falar mais disso posteriormente),
se encarrega de criar um laço mais íntimo com o assistente e informá-lo
constantemente, não de forma expositiva, mas objetivando aparar as sobras que a
transição considerável de um evento a outro pode deixar.
Rapidamente impostos tais parâmetros, O
Irlandês aposta em uma estória completa com começo, meio e fim, evidenciando
desde as primeiras conexões de Frank e os trabalhos decorrentes até a solidão
de um envelhecimento débil e martirizante. (SPOILERS A
SEGUIR) Dito isto, um dos grandes diferenciais da obra está na maneira
crível com que ela fecha o ciclo do personagem, não de forma glamorosa morto em
um grande embate entre mafiosos ou capturado pela polícia em algum tipo de
espetacularização para o público, mas sim sozinho e abandonado em um asilo
constatando a decadência da vida e o esquecimento que abarca até os mais
egrégios dos criminosos. (FIM DOS SPOILERS)
Embora o primeiro ato se desdobre articulando o
ingresso de Frank nesse novo mundo, este também é o que possui maior quantidade
de imperfeições. A estrutura é um tanto quanto bagunçada, com flashbacks
dentro de flashbacks que não são devidamente necessários, e um amontoado
de personagens e acontecimentos que acabam por constipar o respectivo bloco.
Tal imbróglio é reparado com a introdução de Jimmy Hoffa no enredo, que é
também quando este consuma suas diretrizes. Além de carismático, o entrecho
manipula Hoffa como intermédio cômico, visto que sua personalidade tenaz e
ascérrima concebe alguns dos momentos mais hilários da película, seja ele
afrontando, provocando ou fazendo picuinhas com outros personagens. Portanto, a
jocosidade do filme denota assaz melindre, provendo da genuinidade dos rumos
imprevisíveis que os palratórios tomam.
Referente aos personagens, estes entram e saem
da trama de acordo com as circunstâncias vigentes, sendo que todos possuem
enorme peso em tela e jamais são sobrecarregados pelo roteiro. As concepções
dialógicas que moldam a interação entre os mesmos são um dos grandes trunfos de
Scorsese, haja visto que são ágeis, verossímeis e passeiam de um assunto a
outro com muita naturalidade. Apesar de várias vezes verborrágicas, as
conversações, em contrapartida, nunca tornam-se prolixas, considerando que elas
salientam o caráter das figuras em cena, reiteram a química que há entre estas
e enaltecem a habilidade do diretor em escrever ótimos diálogos.
Por sua vez, a montagem é a responsável por
fazer com que uma produção de três horas e meia passe em um piscar de olhos.
Salvo as digressões do primeiro ato, a respectiva é dinâmica e eficaz, tornando
a passagem de tempo praticamente imperceptível e tendo como indicativo
apenas o sutil envelhecimento das personas. Corroborando, destaca-se a breve
inclusão de legendas durante a inserção de todo novo personagem, o que de
imediato contextualiza o espectador sobre o histórico e a importância do mesmo
e não permite que o enredo se embargue nas formalidades narrativas que uma
apresentação convencional iria requerer.
Consoante a inspiração do longa em uma história
veraz, porém permeada por especulações e um desfecho no mínimo suspeito,
Scorsese aproveita-se da liberdade lhe incumbida para dar vida a uma odisseia
que abrange mais de quarenta anos de jornada e se vê com um imenso potencial
inventivo. Em outras palavras, o cineasta usa o cenário em branco que lhe é
ofertado para desenvolver um tema com que o mesmo se envolveu ao longo de toda
a carreira: a máfia. Por conseguinte, o público é levado a conhecer todos os
tentáculos organizacionais do sistema supracitado, desde as formas veladas de
comunicação e metodologias escusas até um esquema gigantesco que está arraigado
no mais improvável (ou que deveria ser) dos âmbitos, no caso, a política. No
mais, é a veemência dessa disposição que faz com que a película continuamente se
reviscere e sempre tenha algo inusitado a contar, sobretudo sem cair em
marasmo.
Contudo, vale frisar que, embora este seja um
filme feito com o intuito de escrutinar a vida criminosa de uma pessoa real e
as diversas ramificações do núcleo o qual ela agrega, O Irlandês igualmente
demonstra um olhar atento para o íntimo de seus personagens. O principal
expoente dessa natureza é a relação conturbada de Frank com sua filha, o que é
estabelecido com argúcia pelo roteiro, revelando-se apenas pelo comportamento reticente
e os olhares acusatórios de Peggy, um julgamento silencioso e até demonstrações
de espanto frente às atitudes do pai.
Outrossim, a nova obra de Scorsese é um
trabalho sofisticado que exprime esmero em todas as suas vertentes. A
reconstituição de época é primorosa, desde o cuidado com o design de
produção em imergir o assistente dentro do período retratado, até o figurino
garboso que enfatiza colorações negras, amarronzadas e cinzentas tipicamente
atribuídas ao espírito soturno do século XX. A trilha, dentro de sua proposta,
orquestra o tom exigido pelo script, enquanto o rejuvenescimento digital
se mostra operante em suas empreitadas.
Por fim, é indispensável enaltecer o desempenho
cênico do elenco. Al Pacino, como Jimmy Hoffa, vive com aptidão um sindicalista
de muita lábia, desenvoltura em público e que, vez ou outra, não contém o
temperamento explosivo. Já Joe Pesci, que tem andado longe dos holofotes, volta
a brilhar como um dos "chefões" mais calmos e estrategistas da máfia,
enquanto Robert De Niro incorpora habilmente a solenidade de um homem discreto
e a frieza de um assassino implacável. Ademais, convém realçar a extraordinária
dinâmica do trio protagonista que é ofuscada somente pela truculência do fecho
pouco ordenado concedido aos inúmeros personagens que, cada qual ao seu modo,
complementam a trama.
Em suma, O Irlandês, apesar de imperfeito, é um
audiovisual charmoso, imersivo e magnificente.
Matheus J. S.
Assista e Kontamine-se
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Ficha Técnica:
Data de lançamento: 14 de
novembro de 2019
Direção: Martin Scorsese
Elenco: Robert De Niro, Al
Pacino, Joe Pesci…
Gênero: Suspense
Nacionalidade: EUA
Sinopse (Adoro Cinema):
Conhecido como "O Irlandês", Frank
Sheeran (Robert De Niro) é um veterano de guerra cheio de condecorações que
concilia a vida de caminhoneiro com a de assassino de aluguel número um da
máfia. Promovido a líder sindical, ele torna-se o principal suspeito quando o
mais famoso ex-presidente da associação desaparece misteriosamente.
Avaliação:
IMDb:
8,3
Rotten:
96%
Metacritic:
94%
Filmow
(média geral): 4,3
Adoro
Cinema (usuários/adorocinema): 4,0/5,0
Kontaminantes
(Matheus J. S.): 9
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