7 de dezembro de 2019

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O Irlandês

Pôster


A era de ouro da máfia nos cinemas ficou para trás. Entretanto, Martin Scorsese, um dos maiores peritos do assunto que ainda hoje se mantém em atividade, se mostra mais do que disposto a lembrar o mundo do por que este é um gênero que ficará marcado para sempre nas telonas.
Com um esqueleto bastante similar a Cassino e Os Bons Companheiros, O Irlandês apresenta um terreno com o qual Scorsese já está familiarizado a desbravar. Em face disso, o filme usufrui de uma estrutura que abdica da linearidade em prol de uma segmentação narrativa temporal que visa oferecer um vislumbre do destino que o longa está tomando. Este é inteiramente narrado por Frank que se comunica diretamente com o espectador, o que, em consonância a montagem frenética (irei falar mais disso posteriormente), se encarrega de criar um laço mais íntimo com o assistente e informá-lo constantemente, não de forma expositiva, mas objetivando aparar as sobras que a transição considerável de um evento a outro pode deixar.
Rapidamente impostos tais parâmetros, O Irlandês aposta em uma estória completa com começo, meio e fim, evidenciando desde as primeiras conexões de Frank e os trabalhos decorrentes até a solidão de um envelhecimento débil e martirizante. (SPOILERS A SEGUIR) Dito isto, um dos grandes diferenciais da obra está na maneira crível com que ela fecha o ciclo do personagem, não de forma glamorosa morto em um grande embate entre mafiosos ou capturado pela polícia em algum tipo de espetacularização para o público, mas sim sozinho e abandonado em um asilo constatando a decadência da vida e o esquecimento que abarca até os mais egrégios dos criminosos. (FIM DOS SPOILERS)
Embora o primeiro ato se desdobre articulando o ingresso de Frank nesse novo mundo, este também é o que possui maior quantidade de imperfeições. A estrutura é um tanto quanto bagunçada, com flashbacks dentro de flashbacks que não são devidamente necessários, e um amontoado de personagens e acontecimentos que acabam por constipar o respectivo bloco. Tal imbróglio é reparado com a introdução de Jimmy Hoffa no enredo, que é também quando este consuma suas diretrizes. Além de carismático, o entrecho manipula Hoffa como intermédio cômico, visto que sua personalidade tenaz e ascérrima concebe alguns dos momentos mais hilários da película, seja ele afrontando, provocando ou fazendo picuinhas com outros personagens. Portanto, a jocosidade do filme denota assaz melindre, provendo da genuinidade dos rumos imprevisíveis que os palratórios tomam.
Referente aos personagens, estes entram e saem da trama de acordo com as circunstâncias vigentes, sendo que todos possuem enorme peso em tela e jamais são sobrecarregados pelo roteiro. As concepções dialógicas que moldam a interação entre os mesmos são um dos grandes trunfos de Scorsese, haja visto que são ágeis, verossímeis e passeiam de um assunto a outro com muita naturalidade. Apesar de várias vezes verborrágicas, as conversações, em contrapartida, nunca tornam-se prolixas, considerando que elas salientam o caráter das figuras em cena, reiteram a química que há entre estas e enaltecem a habilidade do diretor em escrever ótimos diálogos.
Por sua vez, a montagem é a responsável por fazer com que uma produção de três horas e meia passe em um piscar de olhos. Salvo as digressões do primeiro ato, a respectiva é dinâmica e eficaz, tornando a passagem de tempo praticamente imperceptível e tendo como indicativo apenas o sutil envelhecimento das personas. Corroborando, destaca-se a breve inclusão de legendas durante a inserção de todo novo personagem, o que de imediato contextualiza o espectador sobre o histórico e a importância do mesmo e não permite que o enredo se embargue nas formalidades narrativas que uma apresentação convencional iria requerer.
Consoante a inspiração do longa em uma história veraz, porém permeada por especulações e um desfecho no mínimo suspeito, Scorsese aproveita-se da liberdade lhe incumbida para dar vida a uma odisseia que abrange mais de quarenta anos de jornada e se vê com um imenso potencial inventivo. Em outras palavras, o cineasta usa o cenário em branco que lhe é ofertado para desenvolver um tema com que o mesmo se envolveu ao longo de toda a carreira: a máfia. Por conseguinte, o público é levado a conhecer todos os tentáculos organizacionais do sistema supracitado, desde as formas veladas de comunicação e metodologias escusas até um esquema gigantesco que está arraigado no mais improvável (ou que deveria ser) dos âmbitos, no caso, a política. No mais, é a veemência dessa disposição que faz com que a película continuamente se reviscere e sempre tenha algo inusitado a contar, sobretudo sem cair em marasmo.
Contudo, vale frisar que, embora este seja um filme feito com o intuito de escrutinar a vida criminosa de uma pessoa real e as diversas ramificações do núcleo o qual ela agrega, O Irlandês igualmente demonstra um olhar atento para o íntimo de seus personagens. O principal expoente dessa natureza é a relação conturbada de Frank com sua filha, o que é estabelecido com argúcia pelo roteiro, revelando-se apenas pelo comportamento reticente e os olhares acusatórios de Peggy, um julgamento silencioso e até demonstrações de espanto frente às atitudes do pai.
Outrossim, a nova obra de Scorsese é um trabalho sofisticado que exprime esmero em todas as suas vertentes. A reconstituição de época é primorosa, desde o cuidado com o design de produção em imergir o assistente dentro do período retratado, até o figurino garboso que enfatiza colorações negras, amarronzadas e cinzentas tipicamente atribuídas ao espírito soturno do século XX. A trilha, dentro de sua proposta, orquestra o tom exigido pelo script, enquanto o rejuvenescimento digital se mostra operante em suas empreitadas.
Por fim, é indispensável enaltecer o desempenho cênico do elenco. Al Pacino, como Jimmy Hoffa, vive com aptidão um sindicalista de muita lábia, desenvoltura em público e que, vez ou outra, não contém o temperamento explosivo. Já Joe Pesci, que tem andado longe dos holofotes, volta a brilhar como um dos "chefões" mais calmos e estrategistas da máfia, enquanto Robert De Niro incorpora habilmente a solenidade de um homem discreto e a frieza de um assassino implacável. Ademais, convém realçar a extraordinária dinâmica do trio protagonista que é ofuscada somente pela truculência do fecho pouco ordenado concedido aos inúmeros personagens que, cada qual ao seu modo, complementam a trama. 
Em suma, O Irlandês, apesar de imperfeito, é um audiovisual charmoso, imersivo e magnificente.
Matheus J. S.

Assista e Kontamine-se

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Ficha Técnica:
Data de lançamento: 14 de novembro de 2019
Direção: Martin Scorsese
Elenco: Robert De Niro, Al Pacino, Joe Pesci…
Gênero: Suspense
Nacionalidade: EUA

Sinopse (Adoro Cinema):
Conhecido como "O Irlandês", Frank Sheeran (Robert De Niro) é um veterano de guerra cheio de condecorações que concilia a vida de caminhoneiro com a de assassino de aluguel número um da máfia. Promovido a líder sindical, ele torna-se o principal suspeito quando o mais famoso ex-presidente da associação desaparece misteriosamente.

Avaliação:
IMDb: 8,3
Rotten: 96%
Metacritic: 94%
Filmow (média geral): 4,3
Adoro Cinema (usuários/adorocinema): 4,0/5,0
Kontaminantes (Matheus J. S.): 9
Avaliação

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