Representante máximo da Igreja Católica, o papa
é uma figura que desperta tanto adoração quanto curiosidade. Dito isso, se
submeter ao escrutínio de sua vida, mais que uma tarefa audaciosa, é uma
investida periclitante, afinal, não é qualquer um que se dispõe a explorar as
vicissitudes da trajetória de um homem santificado por milhões de fieis ao
redor de todo o globo. Entretanto, o brasileiro Fernando Meirelles não se
acanha diante da possibilidade, trazendo ao mundo uma obra que se propõe a
muito mais do que simplesmente um retrato biográfico.
A priori, o filme se inicia perante os
parâmetros que regem a eleição do papa Bento XVI, contextualizando o espectador
com eficiência e dinamismo acerca da repercussão mundial acarretada por esta, e
introduzindo-o mediante o cenário de instabilidade política enfrentado pela
Igreja na época. Não tarde, Dois Papas coloca Bento e Francisco cara a cara, marcando
o pontapé de uma relacionamento primordialmente tenso fruto de pensamentos
contrários, mas que passo a passo ganha contornos mais ternos. Tal tensão é
manipulada habilmente pelo diretor, fazendo-a crescer mediante a câmera que tem
os planos cada vez mais fechados consoante o inflar das discussões.
Por sua vez, o roteiro usa essa oposição de princípios
para confeccionar um mundo em evolução, mas, principalmente, para retratar os
dilemas de uma agremiação padecendo diante de seus valores antiquados. Em
outras palavras, Dois Papas é um audiovisual que, em larga escala, funciona
como o embate entre duas gerações, antagonizando o velho e o novo, conservadores
e progressistas... Sobretudo, esse choque ideológico é encarnado eficazmente
por Anthony Hopkins e Jonathan Pryce, cada qual assiduidamente entregue aos
ideais de seus correspondentes. Enquanto Hopkins vive um papa mais duro, inexorável
e reticente - ademais de incorporar até as fragilidades físicas de sua persona
-, Pryce interpreta um sumo pontífice mais brando, carismático e espontâneo. Um
adendo, vale destacar a atuação de Juan Gervasio como um jovem e impetuoso Francisco.
Ainda que a dinâmica entre ambos seja
formidável, e o roteiro esteja conscientemente calcado em diálogos - mesmo que
alguns deles sejam demasiado expositivos com relação à forma de contextualizar
o assistente referente a determinados posicionamentos de Francisco no passado
-, o longa se reinventa sempre que o texto começa a desgastar. Posto isto,
Meirelles faz muitas experimentações, usando breves trechos de reportagens e
entrevistas, e frequentemente emulando os caracteres típicos de um documentário.
Outrossim, a película recorre a flashbacks em preto e branco para
abordar a juventude de Francisco; é mais um aspecto que se articula como
frescor técnico e visual.
Nesse sentido, Dois Papas, sob um olhar mais íntimo,
é uma lídima representação dos demônios enfrentados por dois seres humanos
responsáveis por liderar uma assembleia que une mais de um bilhão de seguidores
por toda a Terra. Ou seja, com os holofotes voltados a Francisco, o filme, ao
passo que condensa o arco deste, faz duras críticas a ditadura militar sob a
qual a Argentina foi assolada em 1976, enquanto que, concomitantemente, expõe
sem preconceitos a efígie de um homem repleto de conflitos. Convém sublinhar a
paixão do mesmo por futebol, sendo este mais um elemento que o humaniza e estreita
a relação público-personagem.
No mais, o núcleo de Bento XVI é desenvolto com
a mesma dramaticidade, apresentando um indivíduo cheio de arrependimentos,
dúvidas e rancores. Além, o longa não se esquiva de temas mais polêmicos - como
os casos de pedofilia que vieram à tona e tiveram seu auge em 2010 -, vinculando-os
a imagem do papa e a uma pressão decorrente das acusações sofridas pela Igreja
no período.
Em síntese, Dois Papas é uma obra competente
tanto sob um panorama mais amplo, abrangendo um ciclo de transição de um país nos
anos 70 e 80 e as mudanças que revisceraram o catolicismo durante a última década,
como sob uma perspectiva mais intimista, destrinchando a idiossincrasia de dois
líderes de uma das maiores instituições religiosas do planeta, mas que, acima
de tudo, são seres humanos.
Matheus J. S.
Assista e Kontamine-se
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Ficha Técnica:
Data de lançamento (Netflix): 20 de dezembro de 2019
Direção: Fernando Meirelles
Elenco: Anthony Hopkins, Jonathan Pryce, Juan Minujin...
Gênero: Drama
Nacionalidades: Reino Unido, Itália, Argentina e EUA
Sinopse (Adoro Cinema):
Buenos
Aires, 2012. O cardeal argentino Jorge Bergoglio (Jonathan Pryce) está decidido
a pedir sua aposentadoria, devido a divergências sobre a forma como o papa
Bento XVI (Anthony Hopkins) tem conduzido a Igreja. Com a passagem já comprada
para Roma, ele é surpreendido com o convite do próprio papa para visitá-lo. Ao chegar, eles iniciam uma longa conversa onde
debatem não só os rumos do catolicismo, mas também afeições e peculiaridades da
personalidade de cada um.
Avaliação:
IMDb:
7,7
Rotten:
89%
Metacritic:
75%
Filmow
(média geral): 4,2
Adoro
Cinema (usuários/adorocinema): 4,2/4,5
Kontaminantes
(Matheus J. S.): 9
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