Intocáveis, O Auto da Compadecida, Antes de
Partir, Artista do Desastre... e Green Book. O que esses longas têm em comum?
Além da qualidade inquestionável e o gênero similar, as respectivas produções
se assemelham ao apresentar como protagonistas dois homens distintos que,
segundo determinadas ocorrências, constroem uma sólida amizade ou fortificam a
relação, seja entre Driss e Philippe, João e Chicó, Edward e Carter, Tommy e
Greg e, no mais recente caso, Tony e Don.
Apesar de baseado em fatos, Green Book tem uma
estória que, em pleno 2019, não demonstra nada de inusitado. Todavia, embora a
direção seja ordinária, se resguarde a investidas lacônicas e o espectador com
maior acervo cinematográfico já tenha visto este filme, Green Book em momento
algum tem suas qualidades afetadas pela narrativa habitual. Isto se deve
fundamentalmente a dois elementos: a química sublime entre os protagonistas, e
o timing perfeito com que o diretor cadencia a leveza da dinâmica
central à acidez vinculada aos ramos racistas do entrecho. Vale retificar que,
apesar do comando pouco arrojado de Peter Farrelly, o cineasta trabalha
habilmente as vertentes convencionais de seu posto, tal como o ritmo harmônico
comprova.
Concernente à dupla de astros, tanto as
personas quanto os atores são formidáveis. Estereótipos contrários de suas
etnias, Tony e Don, ademais de subverterem arquétipos sociais, contrastam em
todos os aspectos, e isso gera um cômico, orgânico e eficiente baque entre
mundos que se defasam. Tony é, no mais claro português, "relaxado",
despretensioso, impulsivo, sagaz, desprovido de educação, bons modos e
linguajar culto. Já Don é pragmático, preza pela calma e seriedade, elegância,
resoluções dialógicas, comportamento requintado e falas rebuscadas. Embora
airoso, sua imagem só é laureada quando sobre o palco, pois os caucasianos o
repudiam e os negros não o aceitam consoante seu status. Tais exclusões
concebem uma vida dolorosa e solitária para Don que transcende a polarização
racial. Vale ressaltar a sutileza de certas sequências que frisam o vazio e o
martírio latente do personagem.
Tony, que possui pouco mais tempo de tela, tem
sua personalidade primordialmente bem introduzida. Assaz carismática, a figura
instantaneamente cai nas graças do público, contudo na mesma velocidade se
acentuam seus pensamentos preconceituosos. Tais princípios são essenciais para
sua evolução na trama, assim como para estabelecer a forma com que o racismo é
tratado na película. Com ressalvas para esporádicos eventos de violência
física, o caráter segregacionista dos anos 60 é delineado na maneira
revoltante, mas natural com que as pessoas encaravam os negros, seja ao
disponibilizarem banheiros próprios e indignos para estes, não permitir com que
experimentem roupas e até mesmo adentrem específicas localidades. O próprio
título faz alusão a um guia que os motoristas recebem para saber como lidar com
um afrodescendente como passageiro e os potenciais "contratempos", o
que é tremendamente absurdo, mas visto como algo normal na época.
Considerando que Tony é o reflexo cru de tudo
dito - o que se sobressai em suas pressuposições e rotulagens genéricas acerca
da raça negra -, é inevitável uma tensão inicial entre Tony e Don, porém o
roteiro é categórico ao estimular a criação do elo entre os dois a partir desse
choque incipiente. Fluido e humano, ambos têm o relacionamento desenvolvido
conforme se intensificam as situações racistas durante a viagem que realizam, o
que se mostra um método eficaz de inocular condescendência e empatia à figura
do Tony. A discrepância que há entre a idiossincrasia dos personagens é outro
fator que alicerça a amizade, visto que são as hilárias divergências que os
aproximam, proporcionam mútuo aprendizado e transformam a perspectiva dos
mesmos.
Green Book é, sobretudo, um filme sobre a concepção
de laços humanos. Isto é, além da forte relação entre os protagonistas, um
ponto bastante ratificado pelo script é o envio de cartas de Tony à sua
mulher. Aparentemente banal, tal arremetida, ademais de atribuir camadas a
figura, serve para reiterar a conexão que há entre o casal mesmo estando
distantes. É um elemento sucinto da trama que corrobora veementemente com a
mensagem a ser transmitida.
No que se refere ao desempenho cênico, Viggo
incorpora com magnificência seu papel, seja no modo despreocupado com que se
porta, desleixado com que come e inconsequente com que age. A atuação também é
marcada por um físico robusto e um sotaque italiano carregado. Mahershala, por
sua vez, exprime tranquilidade e um ar sábio, eloquência na forma com que se comunica,
graciosidade na maneira constante com que ajeita o terno e desajeito ao provar
um frango. Entretanto, resignação com o preconceito vigente igualmente realça a
performance, assim como um único e expressivo episódio de catarse. Pode-se
dizer que os prêmios até então conquistados são mais que justificáveis.
Não obstante, a confecção do período retratado
é fantástica, seja na arquitetura das casas e monumentos, no design de produção
consentâneo e nas vestimentas características. Deve-se exaltar a trilha sonora
que dita o tom lúdico nos devidos momentos, e denota presença mostrando-se
congruente à época em destaque.
No mais, Green Book tem atuações impecáveis,
enredo contagiante e um equilíbrio tonal primoroso.
Matheus J. S.
Assista e Kontamine-se
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Ficha Técnica:
Data de lançamento (Brasil): 24
de janeiro de 2019
Direção: Peter Farrelly
Elenco: Viggo Mortensen,
Mahershala Ali, Linda Cardellini…
Gênero: Comédia dramática
Nacionalidade: EUA
Sinopse (Google):
Tony Lip, um dos maiores fanfarrões de Nova
York, precisa de trabalho após sua discoteca fechar. Ele conhece um pianista
que o convida para uma turnê. Enquanto os dois se chocam no início, um vínculo
finalmente cresce à medida que eles viajam.
Avaliação:
IMDb: 8,3
Rotten:
81%
Metacritic:
69%
Filmow
(média geral): 4,2
Adoro
Cinema (usuários/adorocinema): 4,2/4,0
Kontaminantes
(Matheus J. S.): 9,5
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